Quem desconhece o poderio do TikTok acredita que se trata apenas de uma rede social de jovens, dominada por dancinhas engraçadas e desafios. Política e eleitoralmente, portanto, o TikTok configuraria uma questão menor, quase irrelevante, sem capacidade de mudar comportamentos, informar (ou desinformar) e influenciar votos em larga escala. É um engano.
O TikTok não é uma rede social clássica; não ganha valor de modo exponencial conforme as interações entre as pessoas se multipliquem. Trata-se de uma plataforma de vídeos curtos, exibidos sequencialmente de modo a maximizar a permanência do usuário, independentemente de quem produziu o conteúdo e da relação do criador com quem assiste. É fácil usar o aplicativo sem criar uma conta e sem seguir alguém.
Não se sabe ao certo como funcionam os algoritmos do TikTok, mas resta inequívoco que são extraordinários: precisam de poucos sinais para oferecer o conteúdo certo ao usuário – por certo, entenda-se o mais eficiente possível para mantê-lo plugado na plataforma. Em segundos, conforme a ação ou a inação de quem está vendo, o TikTok sabe o que despachar em seguida.
Com minutos de uso, a tecnologia da plataforma, que está cada vez mais inteligente conforme ganha escala global, já prevê com grande acurácia o tipo de conteúdo que engajará o usuário. Não é preciso ser especialista em aprendizado de máquina para entender isso. Basta usar a plataforma. Trata-se, possivelmente, da maior e mais eficiente máquina de entrega instantânea de dopamina da história da humanidade.
O TikTok já ultrapassou a marca de um bilhão de usuários mensais. Cresce aceleradamente. Não há números exatos, mas, segundo estimativas usadas pelo mercado publicitário, o Brasil é o terceiro país que mais consome vídeos na plataforma, atrás de Indonésia e Estados Unidos.
A moderação impossível
Um engenheiro que trabalha no TikTok disse à reportagem, sob reserva, que os dados de crescimento no Brasil são espantosos. Outro funcionário, oriundo da Meta (dona do Facebook, do Instagram e do WhatsApp), afirma nunca ter visto números de engajamento como os do TikTok. Ambos acreditam ser impossível moderar conteúdo no curto prazo – e se preocupam com isso. “Qualquer esforço humano é irrelevante. A escala, a velocidade de produção e publicação de conteúdo, o motor de crescimento – tudo joga contra moderação”, diz um deles, que não trabalha no Brasil. A parceria com agências de checagem, para exame manual de conteúdos, é “puro PR”, diz essa fonte, referindo-se a uma jogada de marketing.
De acordo com análise do site Statista, há cerca de 74 milhões de usuários ativos no país. Outras estimativas são mais conservadoras. Todas, no entanto, convergem para algo evidente: o TikTok está ganhando espaço no Brasil e já é usado por milhões de pessoas. E usado pesadamente, por muitos minutos.
Criadores de conteúdo a serviço da campanha de Bolsonaro, assim como estrategistas do presidente, sabem bem disso. E estão aproveitando a oportunidade para encher o TikTok de vídeos perfeitos à plataforma: divertidos, ágeis, leves e adaptados ao humor de muitos brasileiros.
Os marqueteiros usam os atributos do TikTok em favor do cliente. A plataforma favorece a criatividade e a reciclagem de conteúdo – um usuário copiando uma ideia do outro, fazendo dela uma nova versão. Isso abre brecha para editar com sucesso vídeos, imagens e áudios de qualquer um.
Se para criadores tradicionais a edição é um instrumento benigno, um instrumento até mesmo de inovação artística, para quem trabalha com persuasão política a edição ilimitada torna-se uma arma a serviço da desinformação. Cortes, uma característica comum e desejável do TikTok, permitem distorcer falas e criar contextos fantasiosos, afastados de qualquer noção de verdade factual. “É um paraíso”, resume um dos criadores encarregados de produzir conteúdo que seja devorado no TikTok. “O material ganha vida própria. Pessoas comuns até melhoram o que a gente faz e o algoritmo cuida do resto.”
A “tração” bolsonarista
O entusiasmo é tamanho que essa fonte, sob reserva, repassou ao Bastidor 22 vídeos produzidos por bolsonaristas para disseminação no TikTok. Dezesseis deles debocham de Lula ou atacam o PT; quatro falam mal da imprensa; e dois são “papai e mamãe”, como outro criador definiu – trechos de falas de Bolsonaro. A quantidade de vídeos feitos para esculhambar Lula – sempre com uso de humor e frequentemente falando de corrupção – reflete a estratégia da campanha do presidente neste momento.
Um especialista em marketing digital mostrou, com orgulho, duas deepfakes, um tipo de manipulação em que se usa a imagem e a voz da pessoa para criar um vídeo enganoso. “O TikTok nasceu para deepfake“, diz esse editor. “Com a velocidade alta de reprodução e resolução baixa do celular, fica ainda mais fácil de grudar no algoritmo.”
As deepfakes inspecionadas pela reportagem são, de fato, competentes. Uma mostra Lula; outra, Bolsonaro. O uso de outros elementos nos vídeos, como legendas, emojis, músicas e cortes rápidos, distraem quem assiste e facilitam o logro. Bolsonaro faz uma dancinha. Lula admite ser corrupto e diz que gosta de roubar. São deepfakes que, pelo absurdo, admitem ser deepfakes. Mas, segundo os envolvidos, funcionam.
Tanto os funcionários do TikTok ouvidos pelo Bastidor quanto os criadores de conteúdo dizem que os vídeos bolsonaristas estão ganhando cada vez mais “tração” na plataforma, nas palavras de um deles. “É muito óbvio. Qualquer um consegue ver isso”, diz um dos engenheiros da empresa. “Sim, é anedótico, mas dá para perceber o que está acontecendo. E, honestamente, não sei se é possível mudar isso.”
Vinte horas no algoritmo
Para avaliar mais a fundo as afirmações dos envolvidos, o Bastidor analisou vinte horas de conteúdo no TikTok. A reportagem dividiu as experiências em cinco modelos de quatro horas. Cada um deles com diferentes características demográficas e sistemas operacionais. Todos sem criação formal de conta na plataforma. Todos com uma experiência passiva de consumo: dez segundos após o início de cada vídeo, passava-se ao próximo. As quatro horas foram quebradas em duas partes, com intervalo de trinta minutos entre elas.
O pequeno experimento não tem, por óbvio, qualquer pretensão de validade científica. Ainda assim, apresentou resultados dignos de registro. Em todos os cenários, o surgimento de conteúdo pró-Bolsonaro ou anti-Lula foi rápido e intenso: entre três minutos e 14 minutos. Assomou a aparência de um padrão. Quanto mais tempo na plataforma, menor o intervalo entre os conteúdos de teor político – os que aparentavam ter maior engajamento, ao menos em número de comentários e compartilhamento, surgiam primeiro. Confira aqui uma amostra (publicável), em imagem, de trinta vídeos, capturados em apenas sete minutos de consumo de TikTok.
Além de confirmar a percepção dos criadores bolsonaristas e dos funcionários do TikTok sobre a onipresença de conteúdo anti-Lula, a experiência corroborou os relatos de que a plataforma aparentemente é leniente com qualquer tipo de vídeo político e eleitoral. Apenas uma fração dos vídeos continha um pequeno aviso sobre as eleições brasileiras. Resultado da parceria do TikTok com o TSE, o link conduz apenas a um endereço que menciona a relevância do título de eleitor. Escondido e de teor anódino, tedioso, o link é a antítese da plataforma.
Nas vinte horas de vídeos, há uma quantidade extraordinária de conteúdo eleitoral e político. Ao menos nessas cinco experiências, a eleição já estava em curso. Nela, Bolsonaro é o mito irreverente que seus apoiadores adoram. Lula, que aparece muito, mas muito mais do que Bolsonaro, surge como o vilão do país: um corrupto que fala asneiras, defendido por uma imprensa venal. Diante da sucessão rápida e intensa de vídeos, a noção de verdade desaparece – qualquer raciocínio parece obliterado por um barato cognitivo indiferente a fatos.
“Essa é a ideia”, diz um dos especialistas em TikTok. “É uma mudança de percepção sem input do eleitor. Isso que a gente quer. O sentimento anti-Lula já existe, é só trabalhar em cima dele.” Ele e outros marqueteiros depositam grande confiança na capacidade da plataforma em modificar ou consolidar preferências, como, por exemplo, aumentar a rejeição a Lula no Nordeste – um dos principais objetivos estratégicos de Bolsonaro no primeiro semestre. (Há uma quantidade formidável de vídeos que tentam desconstruir o petista entre nordestinos.)
“Só a gente sabe usar”
Os criadores de conteúdo e seus chefes são os primeiros a reconhecer que a reeleição não será ganha, se for ganha, apenas por causa do TikTok. Longe disso. Mas, embora seja impossível apontar uma relação de causa e efeito, insistem que a plataforma já está sendo decisiva para a recuperação de Bolsonaro nas pesquisas. Esperam que ela seja ainda mais útil nos próximos meses, conforme siga a trajetória de crescimento no Brasil, sem o escrutínio a que estão submetidas redes sociais como Facebook e plataformas como YouTube. “O TikTok é a arma secreta de 2022. E só a gente sabe usar”, diz um marqueteiro de Bolsonaro.
Ao anunciar a parceria com o TSE, o TikTok minimizou a presença de conteúdo político na plataforma. Informou que não aceita anúncio de teor político. Disse a empresa: “O TikTok é um lugar para o entretenimento e a expressão criativa. É um espaço onde todos podem se conectar de maneira autêntica e, por isso, trabalhamos para garantir um ambiente seguro e acolhedor para todos. Permitimos que as pessoas se expressem no TikTok de forma criativa e autêntica sobre os assuntos que amam, desde que sigam as nossas Diretrizes da Comunidade. Apesar de isso significar principalmente conteúdos leves e divertidos, sabemos que nossa comunidade se engaja com temas que são importantes para ela, o que em alguns casos pode envolver conteúdo relacionado à política ou eleições. Reconhecemos a importância destes temas e do impacto que um processo cívico, como eleições, tem para um país. Por isso, consideramos fundamental proteger a integridade da nossa plataforma nesses momentos”.
Abaixo, dois exemplos do que o TikTok oferece hoje aos seus usuários no Brasil. Ambas as amostras foram colhidas ontem (terça, dia 3 de maio) à noite, sem criação de uma conta. O primeiro tem 24 minutos e foi registrado após dois minutos de uso, com IP do Rio Grande do Sul. O segundo tem 30 minutos. Com IP de São Paulo, registra o uso do aplicativo desde o início, percorrendo o rápido caminho até a sucessão de conteúdo político, notadamente anti-Lula e pró-Bolsonaro.
Fonte: obastidor